Essa obra de F. Kafka é a previsão das maiores farsas judiciais dos tempos modernos, como os Processos de Moscou e Budapeste. É o supremo protesto contra a volta aos aspectos mais negativos da Renascença, materializados no culto à “razão de Estado”, sob os regimes totalitários.
Essa antevisão aparece no destino trágico e absurdo de José K., escravo e joguete de forças estranhas e invisíveis, tão impessoais como a burocracia que o condena.
Nessa obra aparece com maior clareza o traço original que liga a vida à obra de F. Kafka.
O personagem principal de O Processo coloca-se diante de um problema de caráter finalista:
“da direção e sentido de sua existência, de seu destino inexorável que culmina com a morte”.
Pelo fato de viver “para” esse destino é que o homem kafkiano se converte num condenado permanente sem outro consolo que suas meditações sobre uma culpa inexplicável, projetada em sua vida por uma autoridade impessoal e invisível como ela própria. Essa luta contra o absurdo finalismo de nossa existência adquire aspectos patéticos no homem kafkiano.
Ela é expressa por Kafka quando no seu Diário escreve:
“Eu luto mais que os outros. A maior parte luta com sonhos como quando se agita a mão para desviar minhas forças com reflexão e minúcia”.
O personagem verdadeiro de O Processo é a culpa. Uma culpa surda e invisível ligada organicamente ao ser, à existência.
José K., não enfrenta a luta, limita-se a padecê-la como um doente experimental que sofresse sozinho os efeitos da culpa. Esse herói é um tipo comum de funcionário bancário que enfrenta a Autoridade, “sofrendo” uma culpa cuja origem e razão ele próprio desconhece.
Com essa passividade de José K., diante da culpa e da Autoridade invisível, Franz Kafka esforça-se em mostrar que o que existe “fora” de nós, consiste simplesmente no aniquilamento e no “absurdo”. O inumano sempre bordeja o humano. E todas as consolações edificantes expressas em sistemas filosóficos nada mais são do que “racionalizações” desse absurdo, que só é apreendido pelo processo novelesco. Daí, a opção de Kafka pelo gênero conto ou romance.
O “absurdo” em F. Kafka rejeita todas as formas de “alienação”, seja a família, profissão, dinheiro, sistemas filosóficos, religião e o patriotismo. Elas nada podem contra o “escândalo” que consiste no simples existir.
O herói kafkiano rejeita a santidade como o desespero:
sua atitude é de imobilidade ante o absurdo.
José K., faz a prova da liberdade, permanecendo imóvel ante a Autoridade e atraindo sobre si “livremente” todas as conseqüências de sua atitude.
No decorrer do processo, José K., comporta-se-á como culpado do principio ao fim; em vez de inquirir “porque” o acusam interessa-lhe saber mais “quem” o acusa, tentando manter-se lúcido, a única arma que lhe resta. Sua tristeza é ter que se ir, sem conhecer nem saber que juiz o condena.
A impessoalidade da burocracia judicial transparece claramente no encontro entre José K. e o pintor:
- Os grandes advogados quem são? Como podem ser vistos? – pergunta José K.
- Você nunca ouviu falar deles? – responde o pintor. Não há nenhum acusado que não sonhou com eles durante algum tempo. Não se deixe dominar por essa debilidade. Quem são? Não sei. Quanto a conhecê-los, impossível.
Vemos o tema da autoridade unido estreitamente à culpa. José k., não pode viver sem se justificar. Então, tende a procurar a Autoridade. E se tal Autoridade não existisse, pensa ele, para que então essas idas e vindas, todo esse sofrimento, todo esse absurdo? Ela existe mas não é acessível a José K. Estamos diante da “incomunicabilidade”. A Autoridade, o Conselho Judicial de um lado, o homem do outro.
É a presença hofmaniana dessa máquina judicial, de uma justiça invisível que deixa no ar o gesto cego e impensado de uma acusação e uma sentença que parecem agitar-se no vácuo, funcionando mecanicamente que acaba reduzindo o individuo a condição promíscua de sub-homem.
Na prisão de José K. revela-se novamente a incomunicabilidade. Os funcionários que o prenderam nada podem dizer. Estão aí para prendê-lo, para cumprir ordens. “Tudo existe, mas nada se comunica”. A desconformidade do movimento parcial é a lei. Cada fenômeno move-se em seu próprio circulo hermeticamente fechado, sem ligação com o general.
O espanto de José K. ante sua detenção não tem limites. Nascido sob o agasalho de uma Constituição que garantia os direitos individuais, não concebe essa invasão em sua vida e ainda desconcertado pergunta:
- De que falam? A que serviço pertencem? Ninguém lhe responde.
Essa experiência do pacato cidadão diante da Autoridade é uma visão antecipadora do processo de sujeição do homem ao totalitarismo vivido na experiência do fascismo, nazismo e estalinismo.
José K. sente a força do destino em sua vida: este está traçado. Se o deixassem em liberdade condicional o pacato José K. seguiria sua existência normal: ir ao Banco, visitar semanalmente Elsa, passear com o chefe. Tenta iludir-se pensando que sua detenção nada pode ter de terrível.
José K. achega-se ao guarda principal e os outros se achegam por sua vez, formando um grupo cerrado. Por um processo de abstração ele se imagina tomando parte no grupo que o persegue, o “acusado livre” comenta o seu próprio “caso” com outrem, como se outro fosse. No entanto ele, nem sempre pode levar-se pelos vôos da imaginação e manter-se calmo.
Há momentos em que o desespero se apodera dele. Então, é quando sente a necessidade de conversar despreocupadamente, justificar-se perante os outros. José K. procura contacto com a vida, com os bens terrestres, coisa que Kafka aspirará encontrar em sua vida, mais inutilmente.
Angustiado José K. procura comunicar-se; sente uma incoercível necessidade de falar sobre o “caso” com a Senhora Grubach, travar com ela relações mais amigáveis, quotidianas.
O que importa n’O Processo é o culpado mais do que a justificação ou não da causa, que é pouco menos que secundaria, porque a justiça é inacessível, permanecendo incomunicável com o homem. Essa máquina permanece só, sem gestos, nem aparatos, como uma presença insólita no drama do humano.
Nesse singular processo pouco interessa o dia do julgamento:
ele se efetua num “domingo”.
O lugar onde funciona o tribunal pouco importa, num “local abandonado”. Pouco importa o “nome” do acusador; José K. é confundido com um pintor de paredes. Uma promiscuidade horrível reina em seu redor e tudo se processa numa marcha “mecânica” e “indiferente”. Pressente-se que o desfecho inevitável do drama, que se passa num ambiente opressor, junto às lavadeiras inexplicáveis, é a “morte”.
Isso todos sabem porque todos estão envolvidos. A intervenção inexplicável do tio do acusado no processo representa “simbolicamente” um chamado à vida familiar, de cujo circulo Franz Kafka permaneceu inteiramente afastado.
O advogado sob cuja tutela o herói permanecerá durante o transcorrer do processo, representa a transição com a corrupção, a cujos sinistros mecanismos é mister submeter-se e a cuja autoridade é impossível atingir. Essa é a significação exata da presença de Titorelli, pintor medíocre, amigo, tal como o advogado, de juizes subalterno se servis que muito pouco farão por José K. lhe diz:
- Pertences à Justiça? Para que me queres?
- A Justiça nada quer de ti. Toma-te quando vens e deixa-te quando vais.
Certa noite a Justiça vestida de negro aparece diante de José K. Levam-no a um local afastado e com três facadas no coração liquidam-no. Onde estava o juiz? Onde estava a Alta Corte que o condenou? Continuam sendo entidades abstratas e incomunicáveis com o humano, com José K. transformado em símbolo.
extrato do ensaio de Maurício Tragtenberg sobre FRANZ KAFKA – O ROMANCISTA DO “ABSURDO”.
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