"O anarquismo defende a possibilidade de organização sem disciplina, temor ou punição, e sem a pressão da riqueza."

emma goldman

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2010/07/21

extraindo conceitos__79

A moral, segundo os dicionários, é a ciência que projeta as regras a seguir para fazer o bem e evitar o mal. Ela é, assim como o direito, uma ciência normativa, pois “ela formula regras e preceitos”.

Tal definição evita responder a questões que o simples bom senso impõe:

a moral é considerada aqui como uma “ciência”, mas se pode afirmar que as “regras” que ela formula têm o caráter imperativo das leis científicas?

Quem definirá o bem e o mal?

Quem fixa — ou fixou — essas regras e preceitos:

um deus, uma religião, a tradição, o consentimento universal?

Trata-se aí de uma moral imposta que tem para os indivíduos um caráter obrigatório e que leva a precisar com cuidado o que é proibido e o que é permitido:

a sanção será, então, o complemento natural da obrigação.

Um caso extremo — mas hoje banal — é aquele de populações inteiras submetidas a uma “moral” que serve aos interesses de uma classe social, de uma oligarquia, de uma ideologia.

O bem, é o que está conforme à vontade do poder; o mal, é o que poderia enfraquecer o poder. Em tal moral existe uma oposição absoluta entre o que é proibido e o que é permitido:

a perfeição é alcançada quando o que é permitido confunde-se com o que é obrigatório!

Uma moral única, como o diz com muita justeza Guyau, é opressiva por essência. Só a diversidade das morais pode salvaguardar a liberdade e a personalidade dos indivíduos:

morais não impostas, mas livremente aceitas por um grupo social cujos membros estão de acordo quanto regras de vida no interior do grupo e de comportamento em relação aos indivíduos exteriores ao grupo.

Pôde-se, assim, falar de moral estóica ou de moral epicuriana. Podemos da mesma maneira falar de moral anarquista?

* * *

Moral anarquista:

parece que há uma contradição entre esses dois termos.

A idéia de moral é, com efeito, associada — não apenas nos dicionários, mas também no espírito de muitas pessoas! — à idéia de obrigação e sanção. Ora, quem diz obrigação diz autoridade, amiúde injustificada, e poder abusivo:

o que é contrário ao pensamento anarquista.

Mas se os anarquistas estão de acordo sobre alguns princípios essenciais que os guiarão em suas relações entre eles e com o resto da sociedade, poder-se-á, então, falar de uma moral anarquista:

uma moral livre de toda obrigação opressiva e de toda sanção repressiva.

Essas precisões autorizam-nos a associar a palavra “moral” à palavra “anarquista”, sem que seja necessário substituir o latim pelo grego e “moral” por “ética”.

Como os anarquistas concebem uma sociedade na qual os indivíduos e os grupos de indivíduos viveriam e trabalhariam segundo a moral anarquista? Tudo o que foi escrito sobre a moral anarquista mostra muito bem que se trata de uma moral do futuro e a adaptação das idéias anarquistas a uma sociedade conduz a escrever uma sociedade dos tempos futuros.

Não se trata de escrever um romance de antecipação, nem de entregar-se a profecias fortuitas e seria ridículo entrar em detalhes estéreis. Limitar-se-á a extrair as idéias diretoras da moral anarquista e mostrar qual nova sociedade nasceria de sua aplicação. Alguns censurarão a moral anarquista por suas lacunas e sua imprecisão, mas ela é o testemunho de um esforço construtivo em vista de uma sociedade livre, igualitária, fraternal, que recolocará nas mãos dos produtores e dos cidadãos a gestão direta da economia da cidade.

Sociedade livre?

Defender antes de tudo — e em todos os campos — a liberdade do indivíduo e suprimir os poderes arbitrários.

Reconhecer no trabalho a autoridade fundada na aptidão e na competência, não pode justificar o poder de um indivíduo sobre outros indivíduos, nem a legalização desse poder. Isso acarreta o desaparecimento do Estado autoritário, centralizado, onipresente e dos organismos — exército, polícia, justiça — que são os auxiliares do Estado. A liberdade de cada indivíduo não pode existir senão na liberdade dos outros indivíduos.

Sociedade igualitária?

Igualdade não significa identidade:

a diversidade dos indivíduos, de suas vocações, de suas aptidões, de suas capacidades, é indispensável à divisão do trabalho.

Quando indivíduos contribuem utilmente a uma tarefa coletiva, eles merecem a mesma consideração, o mesmo tratamento e — eventualmente — a mesma remuneração. Os anarquistas opõem-se a essas hierarquias que criam classes privilegiadas e instauram desigualdades que nada justifica senão a tradição, o desprezo do trabalho manual julgado “inferior”, e a manutenção das situações adquiridas.

Sociedade fraternal?

Não basta suprimir a violência organizada e sistemática do Estado e de seus auxiliares, também é preciso — o máximo possível — eliminar toda violência nas relações humanas.

A sociedade anarquista deve ser fundada na cooperação, na solidariedade e no apoio mútuo. Viver em sociedade acarreta uma certa alienação da liberdade individual, mas a perda da “liberdade absoluta” é compensada pelas vantagens que dá a vida coletiva.

Sob uma condição:

a vida “social” deve respeitar as liberdades essenciais do indivíduo e sua personalidade.

Gestão direta?

Os anarquistas não concebem a organização da economia e da comuna senão gerida diretamente pelos interessados: por aqueles que participam da produção ou da vida da comuna.

As diretrizes e as decisões partem da “base” e os responsáveis em todos os escalões dos organismos de coordenação têm mandatos precisos, são controlados por seus mandantes e são em qualquer caso destituíveis. Assim, a estrutura federalista das unidades de produção e das comunas evita o autoritarismo e a burocratização de um aparelho permanente.

* * *

Tal sociedade fundada na moral anarquista provoca naturalmente muitas críticas. Eis a mais corrente:

“É um sonho bem sedutor esse de uma sociedade que traria mais justiça e harmonia... mas quando pensamos na natureza humana e na estrutura do mundo atual, é apenas uma construção do espírito, um sonho irrealista, uma utopia.”

Deve-se reconhecer que, desde há um século, as conferências, os meetings, as discussões, nossas brochuras e nossos jornais não fizeram progredir o anarquismo.

O único resultado obtido foi substituir no espírito das pessoas a imagem do anarquista terrorista e sanguinário pela imagem do anarquista sonho-vazio, cheio de boas intenções... mas que não têm os pés sobre a terra!

E a questão essencial que se coloca aos anarquistas é esta:

“Admitindo que vossa sociedade seja realizável, como passareis do sonho à realidade? Por que meios esperai transformar o mundo?”

Não se pode edificar uma nova sociedade senão sobre as ruínas da antiga sociedade. Transformar o mundo supõe a destruição radical do passado.

Os anarquistas que sempre combateram o engodo do sufrágio universal e a farsa eleitoral, não podem, com certeza, pensar que uma nova sociedade nascerá de algumas reformas anódinas penosamente arrancadas no âmbito da democracia parlamentar.

O socialismo “no poder” não pode modificar as estruturas profundas da sociedade, mudar o sistema de propriedade, pôr um termo definitivo na política de armamento e no militarismo.

Se a via reformista não conduz a nada, deve-se concluir ingenuamente:

“Não há outra coisa a fazer senão a revolução”?

Que revolução, com quem e por quê?

A época do romantismo revolucionário e das barricadas passou. Desde 1917, todas as revoluções fracassaram (Ucrânia, Espanha) ou serviram a minorias dizendo-se de “vanguarda” para tomar o poder, conservá-lo por todos os meios opressivos próprios aos Estados e aos exércitos.

O proletariado, em nome do qual se dizia exercer a ditadura, escapou de uma servidão para cair numa outra ainda pior. O novo poder conservou todas as taras do antigo, com a mentira e a hipocrisia a mais.

Os anarquistas jamais aspiraram a tomar o poder e os exemplos da Ucrânia [1917 - 1921] e da Espanha [1936- 1939] mostram muito bem que se associar aos futuros ditadores é um autêntico suicídio. Nessas pretensas revoluções, os anarquistas só podem ser contra-revolucionários.

Mas então, nem socialismo “à francesa”, nem comunismo “à russa”? A sociedade anarquista só pode nascer por um amplo sobressalto popular — uma revolta e não uma revolução, para retomar a terminologia de Stirner — por ocasião de uma grave crise econômica e política que colocará a questão:

sobreviver ou desaparecer.

Diante das falências sucessivas do liberalismo, do socialismo reformista e do pretenso comunismo, só restará a solução anarquista e talvez os anarquistas sejam capazes de engajar — e não dirigir — uma corrente popular que se beneficiará da neutralidade da massa dos indiferentes e dos resignados.

Se essas condições forem realizadas, deveremos enfrentar a resistência feroz dos privilegiados do antigo regime e de seus cães de guarda. Como parecem ridículos os debates teóricos sobre a violência e a não-violência! Toda vez que os anarquistas representaram um perigo, mesmo mínimo, ao Poder, eles foram perseguidos e massacrados.

Diante da violência organizada do Estado, a violência revolucionária é apenas o exercício do direito de legítima defesa. Nesse enfrentamento inevitável — e que será decisivo — todos os meios de luta podem ser aplicados, sob uma dupla condição:

1.- a que eles sejam eficazes;
2.- a que eles não estejam em contradição com os próprios fins do anarquismo.

Os anarquistas não podem praticar nem excusar as tomadas de reféns, as chantagens dizendo respeito à vida ou à morte de inocentes, a tortura, as violências inúteis, o terrorismo cego, tudo o que tende a aviltar e a desonrar o adversário. A violência — quando necessária — nada tem de comum com a fria crueldade das “repressões legais”!

Assim, uma sociedade fundada na moral anarquista só parece realizável num futuro bem impreciso. Que isso não seja pretexto ao desencorajamento! Houve no passado dos anarquistas, sempre haverá, e no espírito de muitas pessoas existe um anarquismo latente que pode um dia passar à ação.

Continuar a propaganda escrita e oral, participar de todas as lutas cotidianas e parciais sem sectarismo, mas sem compromisso, e, assim, manter-se pronto para toda eventualidade:

tal é o dever dos anarquistas nestes tempos de incerteza.

* * *

Talvez fosse necessário, também, livrarmo-nos de certas fórmulas que repetimos por hábito sem nos darmos conta de sua estupidez.

Esta, sobretudo:

“Combatemos as idéias e não os indivíduos.”

Há algo de mais imbecil do que esta solene afirmação... a menos que seja apenas um procedimento deselegante e hipócrita de “distinguir-se” do terrorismo? É verdade, não se mata uma idéia, mas se se suprime os indivíduos que a representam, ela perde seus apoios e torna-se sem força.

Assim operam os Estados que, para entravar ou quebrar o desenvolvimento possível do anarquismo, massacraram impiedosamente os anarquistas. É realmente possível crer que, permanecendo no terreno das idéias pode-se combater com sucesso o Capitalismo, o Nacionalismo, o Militarismo, sem atacar os capitalistas, os nacionalistas, os militaristas, que são para nós inimigos bem vivos, bem “reais” e mais perigosos que vagas abstrações?

O Militarismo é uma palavra que se presta a justas oratórias; o militarista é um adversário que não se desarma por discursos.

* * *

Os anarquistas não pensam que a mentira e as promessas que nunca serão cumpridas possam servir a suas idéias. Eles não são mercadores de ilusões na feira da política e não celebram os méritos de remédios miraculosos, tais como o socialismo do sr. Mitterrand ou o comunismo dos senhores do Kremlin.

Mas quando se combate as ilusões perigosas, deve-se evitar ser vítima de novas ilusões:

os anarquistas escaparão das seduções da ilusão pacifista?

Guerra à guerra, nunca mais a guerra, amo a paz... são palavras de ordem “mobilizadoras”. Elas reuniram antes de 1914 multidões imponentes sem impedir a Primeira Guerra Mundial. Elas animaram antes de 1939 a Manifestação pela Paz — logo desnaturada e apodrecida pelos elementos stalinistas — e a Segunda Guerra Mundial ocorreu. [...]

Se os anarquistas recusam-se a participar desse circo pacifista, eles também devem renunciar a essa explicação cômoda que torna responsáveis das guerras o Capitalismo, o Comércio das armas, o Imperialismo e outros “ismos” tão anônimos quanto inapreensíveis.

A realidade é mais simples:

a guerra supõe exércitos, fábricas de armas — nucleares ou não — e quadros especializados fortemente hierarquizados que organizam e dirigem fábricas e exércitos.

O simples bom senso indica que, para impedir a guerra ou para realizar o desarmamento unilateral que alguns pacifistas preconizam, o único meio não-utopista é pôr as fábricas de armas fora de estado de funcionamento e os quadros dirigentes fora de condição de prejudicar.

Todo o resto é apenas ilusão para enganar os outros e enganar-se a si mesmo. Dir-se-á que tal tarefa é impossível.

Então, não vivamos num sonho, não acreditemos em Papai Noel, saibamos preparar-nos ao inevitável, mas não esqueçamos esta regra — imperativa! — da moral anarquista:

quaisquer que sejam os acontecimentos, os anarquistas não devem ser lorpas [aparvalhado, pateta, simplório, boçal, imbecil] nem cúmplices.


Texto publicado em Jean Barrué:
Morale sans obligation ni sanction et morale anarchiste.

Tradução: Plínio Augusto Coêlho

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