Carlos Drummond de Andrade
O anúncio dizia: “Amanhã você não vai pagar o seu cafezinho”.
Certamente era um café que se inaugurava, procurando cativar o público. Depois do famigerado Petit Prince de Saint-Exupéry, cativar tornou-se palavra de consumo geral. Como o cafezinho.
Pois não era. A casa fechava-se e, a título de despedida sentimental, não cobraria o cafezinho que fora objeto do seu comércio durante 30 anos.
O freqüentador suspirou:
– Há 20 anos que tomo café nesta casa, e logo quando ela vai acabar é que institui o fornecimento gratuito.
Acrescentou:
– Não é pelo preço do cafezinho, que eu sempre paguei sem sacrifício, e continuaria a pagar, se a casa continuasse. É pela espécie de sonho acordado que isso me provoca, sonho que dura um momento, e se esfarela: as coisas de graça. Elas só ficam sendo de graça na hora em que deixam de ser coisas.
– Mas vem cá, você queria que tudo fosse de graça a vida inteira? – perguntou o amigo.
– Queria. Por que não? Se este cafezinho me é servido de graça neste instante, e, se eu voltar daqui a cinco minutos será servido outra vez de graça, e mais cinco minutos depois, e mais cinco e mais cinco... até eu ficar entupido de café e bradar:
chega, não quero mais!, por que não posso pensar que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de sorriso?
O outro ia retrucar com as leis da economia, as lições do Dr. Gudin, o bom senso, etc., mas o rêveur éveillé não lhe deu folga:
– Saio daqui mal acostumado, vou ao Nino, janto uns camarões, retiro-me despreocupado, pois já não se pagam camarões no Brasil. Nisso corre o garçom ao meu encalço:
“Doutor, o senhor se esqueceu da nota!”
“Que nota”, respondo. “Eu sorri para você e para o restaurante, não é esse o pagamento?”
Ele abana a cabeça desolado:
“Continuamos cobrando em cruzeiros, doutor. E olhe que nos hotéis do Tjurs já se calcula em dólar.”
Veja no que dá a ilusão do cafezinho grátis. No entanto, ao ler o anúncio, eu já estava inclinado a não cobrar de ninguém os meus serviços.
– E mudar-se para o hospício?
– Todos se mudariam para o hospício, isto é, não haveria hospício, pois ninguém mais ia enlouquecer por falta ou excesso de dinheiro. Você chama a isso de sociedade utópica, eu chamo simplesmente de sociedade, nome que anda falsificadíssimo.
Societas generis humani, para gastar o meu Cícero, que nem de graça cai mais no vestibular.
Repare que não estou pedindo nada de graça no sentido comum, de alguém dar a outrem um par de sapatos para sentir-se superior e tirar diploma de generoso.
O que eu proponho (proponho é modo de dizer, ninguém me escutaria se eu propusesse isso ao Ministério do Planejamento ou aos fabricantes de geléia) é dar de graça as coisas, retirando valor às coisas, e valorizando o ato de se desfazer delas.
Todos passariam a oferecer serviços e bens, de que todos se utilizariam sem recorrer a financiamento, pé-de-meia, desfalque, insônia, úlcera duodenal, enfarte, assalto, homicídio, etc. O trabalho deixaria de ser motivo de injustiça, e a produção deixaria de ser causa de guerra.
No começo, a gente faria cara feia, depois se acostumava com esse esporte de oferecer sem cobrar, já que a outra parte, de receber sem pagar, não causaria a menor dificuldade.
Como isto não é possível agora, e suspeito que não o será nos anos que possivelmente ainda terei de vida, que é que vou fazer com este cafezinho grátis de última hora?
– Beber, uai.
– Solução de mineiro, está se vendo. Nada disso.
Trouxe esta garrafinha e vou derramar nela o cafezinho, para guardar como lembrança. É o sinal de um mundo como poderia ser e não é. Pode beber o seu, que o meu ficará guardado no aparador lá de casa.
Levei 30 anos para conquistar este troféu. O mundo não é de graça porque não quer. Ou por burrice.
Disse, derramou, e saiu, portando com unção a garrafinha de café gratuito.
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