"O anarquismo defende a possibilidade de organização sem disciplina, temor ou punição, e sem a pressão da riqueza."

emma goldman

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2010/12/10

questões urbanas


A “reconquista do território”, ou:

Um novo capítulo na militarização da questão urbana (1)


por Marcelo Lopes de Souza

A geopolítica urbana da “guerra ao tráfico”

A partir da desterritorialização dos traficantes de drogas de varejo [venda a retalho] da favela da Vila Cruzeiro (25 de novembro de 2010) e do Complexo de Favelas do Alemão (três dias depois), na Zona Norte do Rio de Janeiro, a expressão “reconquista do território” e outras equivalentes passou a ser fartamente utilizada por diferentes agentes do Estado.

Nos dias imediatamente subsequentes àquele que o jornal O Globo denominou de “O Dia D da guerra ao tráfico”, a grande imprensa escrita, falada e televisionada ficou saturada de alusões à “estratégia territorial” adotada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, à importância da retomada do “controle territorial” por parte do aparelho de Estado e ao revés sofrido pelos traficantes ao terem perdido alguns de seus mais importantes (pela importância logística) territórios.

Muito embora mapas tenham sido já publicados muitas outras vezes em circunstâncias parecidas - por exemplo, mapas com informações, não raro de fidedignidade mais que duvidosa, sobre o número de traficantes armados em cada grande favela da cidade -, jamais se viu antes, nos grandes jornais (em especial n’O Globo e na Folha de São Paulo), tamanha profusão de mapas:

alguns apenas com a localização dos “territórios a serem reconquistados” pelo Estado, outros com um acompanhamento da geografia do avanço das “forças da ordem”, e assim segue.

As metáforas bélicas, também, passaram a ser ainda mais abundantemente empregadas. “A Guerra do Rio” é uma expressão consolidada já há anos no jornal O Globo, e a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e vários outros grandes jornais não ficam muito atrás.

“Guerra”, “batalha”, “soldados do tráfico” e outras expressões, hoje já até corriqueiras, passaram a conviver com outras, mais desabridas, entre as quais se destaca o “Dia D”. Ironia das ironias:

o complexo de favelas que, a partir do “Dia D”, se buscava “reconquistar”, se chama, precisamente, Complexo do Alemão.

À diferença da Normandia ocupada pelas tropas do Terceiro Reich, contudo, os “inimigos”, agora, são pessoas nascidas no mesmo país que os “libertadores” (“libertação”, aliás, tem sido outra expressão muito empregada); na sua esmagadora maioria, esses “inimigos” são jovens negros e mulatos, muitas vezes franzinos, armados com enormes fuzis mas calçados com chinelos de borracha.

A juventude pobre dos espaços segregados é, em última análise, o grande “inimigo” a se temer, real ou potencialmente, no imaginário das elites e da classe média.

O uso das metáforas bélicas, que já vem dos anos 80 e se intensificou na década seguinte - em especial depois da “Operação Rio (I)”, em 1994, a segunda e um dos hoje já numerosos episódios de emprego das Forças Armadas no combate à criminalidade quotidiana -, foi, agora, ainda mais estimulado pelo emprego mais decidido (e mais coordenado com o uso das forças policiais) das tropas federais, em ocasiões anteriores:

blindados de diversos tipos dos fuzileiros navais, blindados do Exército, oitocentos homens da Brigada Paraquedista, helicópteros blindados da Força Aérea…

Como se pode ver pelos jornais publicados nos últimos dias de novembro, o uso das metáforas guerreiras foi, também, complementado pela divulgação de ilustrações vistosas dos blindados e dos helicópteros utilizados.

As comparações, constantemente feitas, entre o “arsenal” dos criminosos e o armamento das Forças Armadas, assim como entre o número estimado de “soldados do tráfico” e o efetivo das forças conjuntas a serviço do Estado, tinham um subtexto que, na boca de alguns comandantes militares (como o Comandante do Batalhão de Operações Especiais, o famigerado BOPE da polícia fluminense, celebrizado pelos filmes “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”), às vezes foi explicitado:

os traficantes não têm nenhuma chance, que se rendam enquanto é tempo.

Uma pergunta que praticamente não se fez:

o fato de, durante décadas, eles terem “desafiado” o Estado, como gosta de se expressar a grande imprensa, não teve algo a ver com a corrupção e, para além disso, com a própria lógica do Estado (e do capitalismo)?…

Mais uma vez, deixou-se na sombra o tema das viscerais articulações entre o legal e o ilegal, a “ordem” e a “desordem”.

segue...

notas:

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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