"O anarquismo defende a possibilidade de organização sem disciplina, temor ou punição, e sem a pressão da riqueza."

emma goldman

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2012/03/12

extraindo conceitos


Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica

MIRIAM MOREIRA LEITE. Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica. 2005.Co-edição EDUNISC.  364 p.

  
Para além do gênero 

por  Eliane Knorr


Publicada em Revista Verve , 2006, no.9, p.293-296.Revista do Nu-sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária (www.nu-sol.org) pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP.

Maria Lacerda de Moura, anarquista do amor livre, pacifista, individualista e de contradições. Entre revoltas, amigos, novas descobertas, caos interior, inventou sua vida. Preocupada com a conscientização da mulher de sua posição servil, dedicou a isso grande parte de sua obra.

Em meados dos anos 80, Miriam Lifchitz Moreira Leite publicou o primeiro estudo acadêmico sobre Maria Lacerda, intitulado Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura e, atualmente, organizou para a Série Feministas, da Editora Mulheres, o livro Maria Lacerda de Moura: uma feminista utópica.

O livro foi criado a partir de excertos de suas obras. Miriam Moreira Leite contextualiza, na introdução do livro, a vida e o pensamento de Maria Lacerda com o pensamento e os fatos da época. O primeiro dos cinco temas definidos no livro é o registro biográfico.

Maria Lacerda conta sobre sua infância, marcada pela religiosidade, e escreve sobre a importância de seu pai, espírita convicto, na construção de seu caráter. Muitas vezes, a linguagem que utiliza em suas reflexões remete a essa religiosidade, ainda que teça uma forte crítica à própria religião. Muitas das contradições de Maria Lacerda de Moura estão nessa fusão do pensamento radical com o pensamento religioso; no entanto ela não nega suas contradições, pois não suprime seus conflitos. Seu pensamento não é mumificado, está em movimento, em constante mutação. É um pensamento vibrante.

O livro está dividido a partir de algumas temáticas principais dentro de cada um dos excertos, temáticas que se atravessam e se entrecruzam sem cessar. Quando reflete sobre a educação, Maria Lacerda coloca também o problema do corpo, da educação do corpo da mulher, deste corpo como uma propriedade que, por princípio, não lhe pertence, e da importância de que cada mulher, a partir de si mesma, emancipe-se, tome conta deste corpo, e desta maneira também se preocupe com uma maternidade consciente.

Maria Lacerda foi uma das pioneiras nos estudos sobre a condição feminina. Criticava ferozmente a servidão das mulheres, afirmando que essa situação era sustentada, também, por elas mesmas. Quando trata do amor plural, o opõe, não só à mulher, dona de casa melindrosa, esposa, mãe de família, mas também às “heteras gregas” [mulheres cuja profissão era o amor, diferiam muito de nossas prostitutas modernas], que se entregam à promiscuidade banal, as mulheres que, de alguma forma, se assujeitam, aceitam as condições colocadas pelo homem. Uma e outra são um duplo de uma mesma face.

O amor plural de que fala é o amor livre, o amor entre indivíduos únicos, o amor do coração generoso, como generosos são os anarquistas. Apesar de muitas vezes colocar a fraternidade como um conceito importante na vida de todos os homens, noutros momentos ela também se posiciona contra, no sentido de que a fraternidade busca a relação somente entre iguais, preocupando-se com a uniformização de todos, enquanto que o amor plural aprecia o particular, o único. “O verdadeiro pluralista é um indivíduo que ama indivíduos” (p.171).

Desenvolve mais intensamente a reflexão que faz sobre o amor plural na companhia de Han Ryner. Não foram poucas as ideias que influenciaram o pensamento de Maria Lacerda de Moura, como as pacifistas religiosas, anarquistas, mas foi com Han Ryner, seu amigo, que encontrou maior ressonância.

Maria Lacerda mostra, a partir do grande número de autores que comenta, sua vontade de conhecimento. Por vezes, deixa evidente uma certa confusão no uso dos termos, adotando conceitos díspares de sua própria reflexão, o que gerou críticas de seus “(...) contemporâneos, quanto à prolixidade, à inconsistência teórica e política, às imprecisões e contradições de suas posições” (p.15). No entanto, sua vontade rebelde e vontade de conhecimento também despertaram a atenção de anarquistas como José Oiticica, responsável por introduzi-la na leitura de diversos revolucionários anarquistas. Entre os mais radicais, conheceu e conviveu com o pensamento de autores que ainda hoje enfrentam resistências, como Max Stirner.

A leitura da obra de Maria Lacerda de Moura remete tanto a um tempo passado como a uma atualidade expressiva. Em uma época em que se discute sobre a legitimidade do comércio das armas, Moura compreende, muito anteriormente, que se trata de uma indústria de guerra e armamentos, que vai muito além da questão da proibição. Afirma ainda que, devido às técnicas modernas, todas as indústrias são hoje indústrias bélicas em potencial.

Levanta a crítica às instituições de confinamento, e condena qualquer espécie de castigo: “(...) as prisões fazem criminosos. A cadeia humilha. Ali explodem degenerescências” (p.106).

Ao contrário de grande parte de seus contemporâneos, não faz uma distinção rígida entre exploradores e explorados, entende que estas posições são mutáveis e intercambiáveis.

A atualidade de seu texto é expressiva também, pois as críticas que fazia ao seu tempo cabem ainda hoje, em uma sociedade que preserva, em muito, seus valores. Maria Lacerda de Moura pensa no Brasil e sobre a maternidade consciente quando diz: “(...) a mulher trabalha, ganha a sua vida, mas, não pode dispor do seu corpo, que não é seu” (p.51).

Pelo tom dado ao texto, consegue passar a vibração de sua revolta. E apesar da crítica que fazia, devido à severidade com que tratava sua “missão” de conscientizar as mulheres, deixa escapar o humor, às vezes irônico, às vezes sarcástico, que não costuma faltar a nenhum anarquista.

De contradições, amores, rebeldias, invenções, vivem os anarquistas. Maria Lacerda de Moura não foi diferente. Na sua singularidade não se tornou uma igual. Não foi uma, foi muitas. Reinventou-se, e não se deixou fossilizar. Não se tornou bolor, e tampouco embolorada tornou-se sua obra.

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