Somente em algumas décadas posteriores, com o surgimento do sindicalismo revolucionário francês, que, aliás, estava profundamente impregnado pelo anarquismo, que tal situação haveria de se alterar.
Como indica Rocker, a atividade dos anarquistas Fernand Pelloutier, Emile Pouget e George Yvetot junto ao movimento operário no período de 1900 a 1907 assumiu uma importância fulcral [muito importante] para a retomada e reatualização da teoria e prática conselhista.
Resguardadas as devidas diferenças históricas, o nosso autor aduz [expor] que foi essa mesma idéia que serviu de inspiração para os operários e camponeses russos nos primórdios da Revolução de 1917, até que ela fosse totalmente subordinada e substituída pela ditadura do proletariado.
Refletindo sobre as causas que levaram a experiência socialista na Rússia ao seu malogro, Rocker sustenta que para além do pouco desenvolvimento industrial, isolamento frente às outras nações capitalistas e, somando-se a isso, avanço da reação burguesa, existe um outro fator que, a despeito da sua profunda importância, fora mencionado apenas superficialmente nas análises até então promovidas:
a união entre os conselhos e a ditadura.
De acordo com o anarquista, esse casamento, já destinado ao divórcio, não podia “engendrar outra coisa senão a desesperadora monstruosidade que é a comissariocracia bolchevique”.
Para Rocker não podia ser de outro modo, pois o sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura.
“Nele se encarnam a vontade da base, a energia criadora dum povo, enquanto na ditadura reinam a coação de cima e a cega submissão aos esquemas de espírito de um diktat” (p.77).
Consistente com o que havia colocado Kropotkin em sua “Carta aos Trabalhadores do Ocidente”, Rocker acredita que na Rússia os socialistas estavam “aprendendo como não se deve implantar o comunismo”.
Assim como o mestre, o pupilo inferia que a teoria de Lênin a respeito da necessidade de um regime ditatorial no período de transição até o desaparecimento da sociedade de classes lhe parecia assaz falsa.
Pois, embora a ditadura pudesse destruir uma sociedade, jamais poderia ser útil para criar uma, algo que só os conselhos, com seu aspecto construtivo, poderiam fazer.
E antevendo as críticas que poderia receber, Rocker afirma que a hipótese segundo a qual a ditadura do proletariado constitui um caso a parte, por se tratar da ditadura de uma classe, não merece nem sequer refutação, pois não passa de um sofisma para enganar tolos.
“É inconcebível”, afirmava ele, “falar em ditadura de uma classe, visto que se trata sempre, no final das contas, de um certo partido, que se pretende falar em nome da classe”(p.90).
Para além da substituição dos conselhos livres por órgãos estatais, a ditadura bolchevique deu início a uma processo de perseguição a todos os revolucionários não comunistas, que ironicamente eram, em sua quase totalidade, defensores do sistema de conselhos.
Se antes, estes eram a glória da revolução, agora não passavam de traidores a serviço do capitalismo internacional.
“Dessa suficiência autoritária de um pequeno grupo que busca encobrir sua sede de poder” (p.46) resultou a destruição da comuna autogestionária de Makhno na Ucrânia em 1918; a repressão aos marinheiros de Kronsdat em 1921 e o encarceramento e assassínio dos anarquistas, sindicalistas, socialistas revolucionários.
Ou de qualquer outra corrente da esquerda que ousasse reivindicar o fim da comissariocracia do partido e uma maior atuação dos conselhos na construção do socialismo.
Após o findar do período do “Comunismo de Guerra”, os conselhos já se encontravam totalmente destituídos da sua autonomia e completamente privados dos seus autênticos defensores. Segundo Rocker, esse foi o primeiro passo para que a guinada da política de Lênin rumo a direita se realizasse por inteiro.
“Pois, com a implementação da Nova Economia Política surgiu à crença de que seria preciso “fazer com que o capitalismo fosse dirigido nas águas do capitalismo de Estado”, já que “o socialismo só poderia se desenvolver a partir deste” (p.454).
Comparando a Revolução Francesa com a Revolução Russa, Rocker lembra com propriedade que a política de Robespierre conduziu a França a ditadura militar de Luis Napoleão Bonaparte.
“Mas” questiona Rocker “a que abismo a política de Lênin e seus camaradas conduzirá a Rússia?” (p.39).
Embora o nosso autor não pudesse ainda responder essa pergunta, haja vista que o seu livro havia sido escrito no calor no dos acontecimentos, ele pressentia com uma intuição quase certeira que esse abismo não poderia ser outro senão o totalitarismo estalinista.
Para concluir essa resenha gostaria de me ater a dois aspectos do livro de Rocker: o historiográfico e o político.
O primeiro está relacionado ao fato que graças a livros como o de Rocker, a historiografia pôde ir além da interpretação dada pelos partidos políticos que se pretendiam os donos da verdade científica e, com isso, mostrar o outro lado da Revolução Russa: a atuação dos conselhos operários.
O segundo se vincula a constação de que assim como aconteceu na Revolução Russa, hoje em dia a esperança de mudar o mundo não pode vir de cima, por meio do Estado, até mesmo por que esse se mostra incapaz de fazê-lo.
Essa esperança deve vir de baixo, através das próprias organizações que os movimentos sociais contemporâneos têm demonstrado a capacidade de criar.
Sob este duplo aspecto, o livro “Os Sovietes traídos pelos Bolcheviques” permanece ainda extremamente atual.
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