"O anarquismo defende a possibilidade de organização sem disciplina, temor ou punição, e sem a pressão da riqueza."

emma goldman

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2010/12/13

questões urbanas


A “reconquista do território”, ou:

Um novo capítulo na militarização da questão urbana (4)


por Marcelo Lopes de Souza

A dimensão “biopolítica” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)

Em excelente artigo publicado neste Passa Palavra, Eduardo Tomazine Teixeira examinou, meses atrás, algumas características das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), implementadas já em pouco mais de dez favelas do Rio de Janeiro [2].

Eduardo Tomazine contribui, entre outras coisas, para chamar a atenção para a geograficidade da estratégia das UPPs, como a sua localização preferencial (favelas encravadas em meio a áreas turísticas e de residência dos mais privilegiados, na Zona Sul da cidade).

Ao que tudo indica, as UPPs representam, ao menos em parte, uma espécie de eficaz asfixia do tráfico de varejo, pontualmente, ao se lograr a desterritorialização dos traficantes de varejo em relação a algumas favelas.

É preciso salientar, contudo, para além disso, não apenas o que já vem sendo comentado (geralmente de modo superficial, por parte da grande imprensa) na cidade, no que diz respeito ao temor da classe média de uma “migração” cada vez maior da violência para a “cidade formal”, devido ao desespero de traficantes que se veriam sem grande parte de sua fonte de renda habitual; é preciso grifar [sublinhar] que a estratégia das UPPs, independentemente de suas outras limitações (e possíveis “perversidades”), é fundamentalmente irreprodutível em larga escala.

Já em 26 de novembro, jornalistas da Folha de São Paulo, repercutindo declarações da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, informaram que “não haverá instalação imediata de uma UPP na comunidade [da Vila Cruzeiro] - para isso seria necessário um efetivo de 2.000 a 3.000 novos policiais, hoje indisponível” (pág. C3).

Como, em uma escala global, os Estados Unidos bem sabem (e como os antigos romanos, Napoleão e Hitler, em parte dolorosamente, aprenderam muito bem), mais cedo do que tarde qualquer potência militar percebe os limites para se multiplicar contingentes de ocupação em “territórios inimigos”.

A geopolítica urbana em curso de aplicação no Rio de Janeiro, tão exitosa midiaticamente - do apoio entusiasmado que a classe média e mesmo os experts em segurança pública (e até muitos pobres) vêm dando às UPPs ao sucesso de operações pontuais de “reconquista territorial” como a do assim apelidado “Dia D” -, não é, contudo, exceção.

As UPPs não poderão ser instaladas em mais que uma pequena fração das cerca de mil favelas do Rio de Janeiro, e não haveria como ser diferente.

Existem, no entanto, outras consequências das UPPs.

Se os traficantes, fisicamente, migrarem para favelas mais distantes e lá se reinstalarem, desalojando outros traficantes ou territorializando novos espaços segregados, isso não contrariará frontalmente o atingimento do objetivo prioritário que é, afinal de contas, garantir maior tranquilidade para a classe média e os turistas, já pensando na Copa do Mundo em 2014 e nas Olimpíadas em 2016.

Mas há mais:

conforme o deputado estadual Marcelo Freixo já chegou, com preocupação, a reconhecer, em artigos de jornal e declarações públicas, existe um risco de que, com a valorização imobiliária que se vem observando no entorno formal de favelas já “pacificadas” e mesmo no que concerne ao mercado informal de certas favelas, a própria dinâmica de valorização do espaço vá, aos poucos, empurrando para fora das favelas da Zona Sul os moradores mais pobres, que seriam substituídos por camadas de poder aquisitivo um pouco maior - ou até bem maior, dependendo da localização.

É o que se conhece, há muitos anos, como “expulsão branca”, e que, segundo algumas evidências, já teve início, acanhadamente, com o próprio Programa Favela-Bairro, anos atrás.

As UPPs, portanto, a serviço, no médio e longo prazos, do capital imobiliário?

Eis um cenário altamente provável, e surgem os indícios de que, especialmente em uma parte da cidade, isso já começa, devagar, a se tornar realidade.

Qual seria, enfim, o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos?

O filme “Tropa de Elite” pareceu induzir o espectador a desdenhar preocupações críticas em torno do papel do Estado e do desrespeito aos direitos humanos, usando, como uma de suas “ilustrações” mais emblemáticas, uma turma de estudantes da PUC que discutia idéias do filósofo Michel Foucault [3].

À luz da evidente importância estratégica do controle territorial nos marcos da atual linha da Secretaria de Segurança Pública do Rio, conforme tem sublinhado insistentemente o secretário Mariano Beltrame, vale a pena, justamente, retornar a Foucault, inclusive para complementá-lo (e, em parte, retificá-lo) em dois pontos:

1) Muito embora ele tenha colaborado de maneira destacada e quase ímpar para a compreensão da “microfísica do poder” e da importância de se enxergar o poder (e a ideia de poder) para muito além do Estado, o termo “território” foi por ele empregado, via de regra, para se referir ao aparelho de Estado e à sua “soberania”.

No entanto, todo e cada poder que se exerce, inclusive nas escalas mais acanhadas, “microfísicas”, possui uma dimensão espacial, vale dizer, propriamente territorial [4]. Como outros autores também já reconheceram - seja explícita ou implicitamente [5] -, o uso que Foucault faz do termo “território” é bastante restrito.

O que está em curso, no Rio de Janeiro, é um complexo conflito de territorialidades, com interesses econômicos e políticos divergentes por trás (sendo que ainda falta incorporar um agente à análise, as “milícias”, o que será feito na próxima seção).

E, por parte do Estado, claramente se vê o desenho, cada vez mais nítido, de uma geopolítica urbana - ainda tateante, capenga (basta pensar na ineficiência e no elevado grau de corrupção que assolam as polícias fluminenses), mas nem por isso negligenciável.

2) Durante seus últimos cursos no Collège de France, Foucault testou e explorou o assunto da “biopolítica”, que seria uma “tecnologia de poder” distinta da “soberania” (que um Estado exerceria territorialmente) e da “disciplina” (que seria exercida com o auxílio de estruturas espaciais como a prisão, o manicômio, etc.).

A “biopolítica”, como o nome sugere, seria a tentativa de enquadramento de populações não por meio da repressão, mas sim mediante um conhecimento de características populacionais (através de recenseamentos e similares) e uma tentativa de interferir, com base nisso, para fazer face a situações contigentes e largamente inevitáveis (mas de algum modo a serem enfrentadas), como epidemias [6].

As preocupações com a “segurança pública” igualmente devem, e com destaque, ser articuladas com as atuações estatais no campo “biopolítico”, não menos que os esforços de enquadramento especificamente soft e vinculados às políticas e legislações de “bem-estar” (legislação trabalhista e previdenciária, etc.), como foi o caso, historicamente, principalmente em certos países europeus - coisas que podem ser entendidas como as versões modernas do “poder pastoral”, para utilizar uma outra expressão foucauldiana [7].

Todavia, Foucault equivocou-se um pouco ao sugerir que o “poder pastoral”, mais que ao “território” (como é o caso do Estado em sua busca de preservação da soberania), visaria as populações, em sua multiplicidade [8].

Ora, Foucault sabia que, também no que diz respeito à “segurança”, populações e espaço são, sempre, indissociáveis - e, como se pode ver, as UPPs, ao mesclarem uma promessa de políticas públicas “sociais” (compensatórias…) com uma ocupação armada, apresentam, cristalinamente, uma dimensão “biopolítica”, para além das tradicionais ações meramente repressivas.

Dessa combinação deriva, aliás, em grande parte, a sua ampla aceitação, inclusive por uma classe média “arejada”. Mas não se trata somente do “espaço”, em geral (na sua materialidade, ou como um “meio” em que operam redes e fluxos).

Trata-se, muito propriamente, também de territórios e processos de territorialização (e desterritorialização).

Territórios controlados por agentes diversos; territórios em escala microlocal (favela, bairro, conjunto habitacional…), que em parte se superpõem relativamente a outros territórios referenciados a outras escalas, em parte se justapõem uns aos outros; territórios que atritam uns com os outros e se sucedem, ao longo das fricções e alterações em matéria de relações de poder.

A territorialidade conta, portanto, e muito; em todas as escalas, e em conexão com as políticas estatais de controle para além da “soberania” e da “disciplina”, da repressão, do “vigiar e punir”.

segue...


Notas

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[2] Eduardo Tomazine Teixeira, “Unidades de Polícia Pacificadora: O que são, a que anseios respondem e quais desafios colocam aos ativismos urbanos?” 1.ª Parte aqui, 2.ª Parte: aqui, 25 de junho de 2010.

[3] Refiro-me ao primeiro dos dois filmes. “Tropa de Elite 2”, de 2010, representa uma nítida mudança de tom, talvez buscada pelo diretor (José Padilha) para se redimir da pecha de patrocinador de um “filme fascista”, acusação sofrida em função do primeiro filme.

[4] O território não deve ser entendido, como ainda hoje muitas vezes o é, como sinônimo de “espaço geográfico” em geral. Um território é um espaço social qualificado, em primeiro lugar e acima de tudo, pela dimensão do poder.

Ele constitui uma espécie de “campo de força”, que corresponde às relações de poder (exercício do poder: estatal ou não, duradouro ou efêmero, heterônomo ou autônomo) referidas a um espaço material (e a identidades e ideologias sócio-espaciais) específico (vide, sobre isso, por exemplo, o texto “O território: Sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”, contido na coletânea Geografia: Conceitos e temas, organizada por Iná de Castro et al. (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995).

[5] Ver, por exemplo, de Rogério Haesbaert, o texto “Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios” (in: M. P. de Oliveira et al. [orgs.], O Brasil, a América Latina e o mundo: Espacialidades contemporâneas [II]. Rio de Janeiro, Lamparina, 2008).

[6] Segundo Foucault, a “biopolítica” ou o “biopoder” consistiria na “maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças…” (Michel Foucault, O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pág. 431).

[7] “[…] [A] história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo.” (Michel Foucault,Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 196).

Porém, como Foucault esclarece, “[i]sso não quer dizer que o poder pastoral tenha permanecido uma estrutura invariante e fixa ao longo do quinze, dezoito ou vinte séculos da história cristã. Pode-se até mesmo dizer que esse poder pastoral, sua importância, seu vigor, a própria profundidade da sua implantação se medem pela intensidade e pela multiplicidade das agitações, revoltas, descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em torno dele, por ele e contra ele.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 197)

[8] Conforme Foucault, “[…] a idéia de um poder pastoral é a idéia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág.173).

Um comentário:

Provos Brasil disse...

Não vejo nenhum tipo de "reconquista de um território", vejo mais uma vez a violencia da polícia contra os pobres!
Vamos ver por quanto tempo o Alemão ficará livre das drogas!

Muito legal o blog!

Provos Brasil